MP 927
FLEXIBILIZAÇÃO CONTRA TRABALHADORES E TRABALHADORAS
MP 927, de 22/03/2020
Grupo de Estudos e Pesquisas para o Trabalho (GEPT), Departamento de Sociologia, Universidade de Brasilia
Participaram da análise: Sadi Dal Rosso, Edvaldo Fernandes, Ângela Teberga, Ricardo Festi, Rebecca Fidellis, Aldo Antonio de Azevedo, Rodrigo Emmanuel Santana Borges.
Brasília, 23 de março de 2020.
O CONTEXTO
A Medida Provisória (MP) 927 teve inspiração em documento apresentado pela Confederação Nacional da Indústria, tendo sido discutida com um grupo de empresários bolsonaristas, em encontro do presidente com grandes empresários, amplamente divulgado pela grande imprensa do país.
Trabalhadores e seus representantes sindicais não foram ouvidos.
Com a reação social à suspensão do pagamento dos salários dos empregados durante quatro meses, o governo recuou editando a MP 928 no dia 23/03/2020 que suspende a medida.
A MP 928, entretanto, não encerra a questão. Ainda precisa ser definido, por exemplo, quem pagará e quanto pagará a) dos salários dos empregados e b) do custo da requalificação da força de trabalho.
ANALISE CRITICA GERAL
Não se encontra um artigo sequer a favor dos trabalhadores e das trabalhadoras nesta MP. Ela pretende flexibilizar o trabalho, operação que é planejada ponto a ponto em favor das empresas e em detrimento dos trabalhadores e das trabalhadoras, envolvendo inclusive o não pagamento de salários por quatro meses, decisão retirada posteriormente pela MP 928 de 23/03/2020 mas que não encerra a questão.
A ajuda às empresas consta explicitamente do art. 3º "Para enfrentamento dos efeitos econômicos decorrentes do estado de calamidade pública, poderão ser adotadas pelos empregadores as medidas de teletrabalho; férias; feriados; banco de horas; a suspensão de exigências administrativas; qualificação do trabalhador; e FGTS.". O artigo 3º menciona também a preservação do emprego e renda dos empregados. Mas a MP explicitou ironicamente a suspensão dos salários dos empregados por quatro meses. É preciso dizer mais?
A negociação individual sobrepõe-se ao acordo coletivo, convenções coletivas e, a princípio, qualquer legislação. O trabalhador fica à mercê da decisão das empresas, em contexto em que os trabalhadores e seus sindicatos estão extremamente fragilizados.
A MP expressa um alinhamento com políticas neoliberais que atendem apenas os interesses imediatos de empresários do extrato de pequeno e médio empresário (pois grandes empresas transnacionais, como as montadoras, tem maior capilaridade pra se manter economicamente e, até mesmo, assegurar os empregos e salários dos trabalhadores) ou setor varejista. O foco é o ajudar o empresariado do comércio – e por isso a crítica permanente de Bolsonaro aos governadores que estão impondo quarentena e fechando o comércio em suas regiões.
A MP vai na contramão das orientações de governos de países centrais (Inglaterra, França, Alemanha e EUA) e de órgãos internacionais que adotaram ou recomendam medidas que protejam a renda dos trabalhadores, com a implementação de renda básica para os mais necessitados.
A MP reintroduz as jornadas de 10 horas diárias varridas do mapa desde 1988 para trabalhadores de empresas cujas atividades forem suspensas. pela via da compensação. É o re-alongamento da jornada de trabalho, cuja tendência era declinante conforme dados das PNADs Continuas.
A MP permite o sistema de 12 por 36 horas, na área de saúde ainda que restrita aos tempos de calamidade pública. Ora, este sistema de organização das horas laborais é extremamente nocivo à saúde de quem quer que seja. Não é por menos que os trabalhadores e seus sindicatos reduziram as jornadas, em nível mundial, de 12 para 08 ou menos horas diárias.
Os auditores fiscais do trabalho são tomados como orientadores e não auditores, cujo trabalho consiste em elevar as condições de trabalho, aplicando a lei em casos concretos.
ANÁLISE DE ASPECTOS ESPECÍFICOS.
CAP II – TELETRABALHO
Toma como base a necessidade de isolamento social, conforme recomendação do Ministério da Saúde.
A primeira medida amplia e regula o teletrabalho, trabalho remoto ou trabalho a distância no período do Estado de Calamidade, seguindo recomendação que já tinha sido feita anteriormente por outras medidas e órgãos do Estado para cumprimento do isolamento social. O que muda é que a medida desobrigada que o teletrabalho e suas atividades constem expressamente em contrato de trabalho (ou termo aditivo).
Recairá sobre o trabalhador as despesas do teletrabalho; existe a possibilidade de regime de comodato (empréstimo), mas como muitos dos trabalhadores que se enquadram nesta medida já possuem equipamento e internet em casa, isso acabará não se aplicando.
Não leva em consideração as várias singularidades que existem para a efetivação do teletrabalho nas atuais condições de pandemia e isolamento social, como é o caso da presença dos filhos em casa por conta da suspensão da aulas.
A medida desconsidera, ainda, o fato de que existem trabalhadores que não têm acesso à internet em suas residências. Embora tais dados possam ser encontrados na última PNAD, de uma forma geral, não há certeza de que tais trabalhadores se enquadrem na proposta do teletrabalho e poderão ser excluídos por não produzirem. O entendimento é que pode ser mais uma estratégia de “uberização” do trabalho, no sentido de justificar futuras demissões.
CAP III - ANTECIPAÇÃO DE FÉRIAS INDIVIDUAIS
Basta informar com 48 horas de antecedência para "antecipar", fazer com que o custo da medida sanitária necessária do distanciamento social recaia sobre o trabalhador, que passará a "dever" férias e perder direito a feriados futuros, a critério do empregador/capitalista (Art. 6º) .
Permite que o empregador suspenda férias ou licenças não remuneradas de profissionais tanto da área de saúde como 'daqueles que desempenhem funções essenciais', sem necessidade formal nem mesmo de antecedência de 48h (consta apenas que se avise, permitido aviso por meio eletrônico, preferencialmente com essa antecedência mínima). (Art. 7º)
Além de ferir o direito de férias e licenças daqueles que já estão no período dos respectivos desfrutes, permite à empresa pagar o adicional de férias posteriormente, até 20 de dezembro, e pagar as férias até um mês após o início do desfrute. A penalização e vulnerabilidade financeira a que sujeita os trabalhadores é aviltante. (Arts. 8 e 9º)
CAP IV - CONCESSÃO DE FÉRIAS COLETIVAS
Permite o fracionamento ilimitado, ao bel prazer da empresa, de períodos de férias coletivas, uma vez que torna não aplicáveis o limite máximo de períodos anuais e o mínimo de dias corridos. Institui-se,potencialmente, jornada flexível similar à do contrato intermitente, ainda que, neste caso, de forma coletiva. (Art. 11º)
Dispensa inclusive da comunicação prévia aos órgãos governamentais correspondentes e aos sindicatos representativos da categoria (Art. 12º )
CAP V - APROVEITAMENTO E ANTECIPAÇÃO DE FERIADOS
Permite a perda de direito ao gozo de uma série de feriados futuros - sem apresentar limite máximo prospectivo, na medida em que faculta ao empregador 'antecipar o gozo de feriados', salvaguardados (de maneira certamente apenas formal) os religiosos, maculando a laicidade da medida. (Art. 13º)
CAP VI - BANCO DE HORAS
Enquanto vigorar o estado de calamidade pública, a saber 31 de dezembro de 2020, fica autorizada a suspensão das atividades pelo empregador e a constituição do regime especial de compensação de jornada, em favor do empregador ou do empregado, para compensação do banco de horas durante 18 meses, operação que pode se projetar até o mês de agosto de 2021.
A compensação pode tomar a forma de horas extras até o máximo de 10 horas diárias. Isto significa a reintrodução horas para trabalhadores que forem atingidos por esta medida das jornadas de 10 horas, que haviam sido varridas do mapa desde 1988.
A compensação poderá ser ordenada pelo empregador, independente de acordos ou contratos.
A medida encaminha formas de compensação a favor dos empresários, não apenas no sentido de acrescentar “mais trabalho” ou trabalho invisível, que pode perdurar por seis meses, sob a forma de mais horas trabalhadas, o que implica em trabalho imaterial, no caso do teletrabalho.
CAP. VII - SUSPENSAO DE EXIGENCIAS ADMINISTRATIVAS
A MP 927 suspende exigências de realização de exames médicos, exceto os dimensionais, estabelecendo ainda sessenta dias após o fim do período de calamidade pública para serem realizados. A saúde do trabalhador que espere e que aguente.
Treinamentos em segurança e saúde do trabalho também são suspensos e serão realizados em até noventa dias, passada a calamidade pública.
O parágrafo 2º do art. 17 estabelece elementos inovadores de caráter político dentro da empresa: "caberá ao empregador observar os conteúdos práticos" dos treinamentos que serão dados aos empregados. Será, ao mesmo tempo, empregador e agente político. Além disso, as eleições para a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes poderão ser suspensas.
CAP VIII - REDIRECIONAMENTO PARA A QUALIFICAÇÃO
Observação ao leitor: o art. 18 da Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020 foi revogado pelo art. 2º da Medida Provisória nº 928 de 23 de março de 2020. O catastrófico e absurdo art. 18 da MP 927 que tratava da suspensão do contrato de trabalho deixando SEM SALÁRIO os empregados por até 4 meses foi retirado da MP.
Portanto, o assunto não está encerrado e vem mais chumbo grosso por aí. A questão não está encerrada.
Isto fornece algum espaço e tempo a trabalhadores e trabalhadoras, sindicatos e associações, federações e centrais sindicais e movimentos sociais em geral a continuar a pressão sobre o Congresso Nacional, deputados e senadores, governadores e prefeitos, deputados estaduais e vereadores em relação às condições de trabalho neste período de calamidade pública. Quem pagará as contas não serão os trabalhadores.
Com este intervalo, caberia um novo olhar para a “qualificação” para o trabalho, vez que, com a revogação do Art. 18 da MP 927, não ficou definida que parte dos salários será paga pelo empregador e que parte pelo Governo Federal.
A estratégia de “qualificação” por parte dos empregadores, poderá não envolver maiores custos, vez que será voltada para menores aprendizes e estagiários, que não constituem ônus significativo para os empregadores, diferentemente do trabalhador formal.
Com a revogação do Art. 18, foram mantidos os dispositivos relativos à antecipação de férias individuais e concessão de férias coletivas durante o período da pandemia.
CAP IX e XI - FGTS e ABONO ANUAL
Tal como uma infecção oportunista, o Governo Federal aproveita o quadro de desolação na saúde pública para avançar, em detrimento dos assalariados, a agenda de precarização das relações do trabalho.
O art. 19 da Medida Provisória 927 dispensa o patronato de recolher os 8% da remuneração de seus empregados referentes ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) entre abril e junho.
O valor dos recolhimentos acumulados no período poderá ser pago sem atualização monetária, multa e demais encargos previstos no art. 22 da Lei nº 8.036 de 11 de maio de 1990, o que é inconstitucional, por configurar pura e simples transferência de renda do trabalho para o capital.
O Supremo Tribunal Federal (STF) já discute na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5090 a aplicação da TR como índice de correção monetária dos depósitos do FGTS. O argumento do Solidariedade, que ajuizou a impetração, é que a TR não garante a necessária recomposição dos recursos do fundo frente aos efeitos da inflação.
Além de prejudicar a capitalização dos recursos dos trabalhadores no FGTS, a medida provisória retira recursos de uma fonte que é utilizada para investimentos essenciais em habitação e infraestrutura, o que pode agravar ainda mais o quadro de desemprego e contração da economia.
Em vez de tirar dinheiro do Fundo de Garantia para fazer empréstimo bilionário sem juros, multas e encargos aos empregadores, o Governo deveria ter adotado modelo semelhante ao sul coreano e alemão, que garante o pagamento de 80 e 60 por cento dos salários dos trabalhadores com recursos públicos no período da quarentena.
O FGTS foi o grande instrumento financeiro sustentado pelo trabalhador por trás do Milagre Econômico decantado pelo Regime Militar inaugurado em 1964. Agora, querem fazer um Plano Marshall tupiniquim e de novo às custas do suor dos empregados de carteira assinada.
Há indícios de que os sindicatos poderão ceder à livre negociação, no que se refere à redução de jornada e de salário, com percentual que pode variar, no sentido de garantia do emprego, para não suspender o contrato de trabalho, como previa a MP. Nesse caminho, o FGTS, objeto frequente de indenização em favor dos trabalhadores nas rescisões contratuais, passa para o controle dos empresários usarem na livre negociação.
CAP X - DEMAIS MATÉRIAS TRABALHISTAS
A MP 927 traz ainda uma enorme quantidade de outras medidas, todas facilitando a vida das empresas: permite aos serviços de saúde lançarem mão da jornada de 12 por 36 horas, durante o período de calamidade pública, um regime de trabalho altamente nocivo aos trabalhadores e às trabalhadores. Não é por menos que a jornada de trabalho foi reduzido de 12 para 8 horas ou menos, através do tempo e por força da pressão dos trabalhadores.
A MP ainda traz outras decisões: que as horas suplementares serão compensadas em até 18 meses após por meio do banco de horas ou como horas extras; a suspensão em até 180 dias dos processos trabalhistas ou administrativos contra as empresas; que as contaminações por coronavirus não serão tidas como ocupacionais (!), já antecipando-se aos tribunais; que acordos e convenções poderão ser prorrogados por 180 dias e, para alívio das empresas, que os auditores fiscais do trabalho operarão como orientadores e não auditores, exceto em acidentes fatais , trabalho escravo e infantil.
CAP XII DISPOSIÇÕES FINAIS
Convalida medidas tomadas pelos empregadores até 30 dias antes da edição da MP 927
Tributos e dívida ativa. As certidões terão validade por 180 dias.